«La pensée pense ce qui la dépasse infiniment»




2012-05-17

o tempo...


... se conta apenas em quantidade atmosférica de mistérios
«Nas curvas negras da forma, o mal infinito»
Francisco Brennand
Ela gostava, gostava, gostava tanto, que ficou tonta, depois com enjôo, de ficar girando, girando, girando, ao redor daquele alvo que nem queria atingir. Pois atingí-lo queria dizer também ter, e perder. E não ter significava viver. Por enquanto.  Tudo era sempre questão de preencher os intervalos da vida com algumas esperanças irrazoaveis, ou improváveis.  Ela corria a noite até o ponto onde o rio se encontrava com o mar para falar com a Dona das causas impossíveis, para adiar mais um pouco o momento de desilusão.  As vezes ela até gritava olhando pela lua, levando uma carga imensa que nem podia nomear.


Ela temia, temia, temia, mais que tudo, aquele instante que chegava, que aparecia de repente entre dois intervalos, a nota falsa (e por isso mais verdadeira que todas as anteriores..) que batia forte e dissonante para destruir aquele edifício que ela tinha construido. Edifício instável...  Ela se lembrava dos castelos de cartas que ela fabricava quando era criança na casa da avó.  Sempre botava a dama de coração là em cima, até a construção cair, e ela começava de novo com tanto prazer.  Tanto prazer.  Pegando a dama de coração na mão com tesão.  Será que crescendo, ela tinha esquecido aquele prazer de construir, com cartas diferentes, castelos cada vez maiores, com sempre, olhando pelo céu, aquela dama?  Aquela dama que não temia morrer mais uma vez. 
Agora, ela receava a morte. Tinha deixado de lado essa vontade inocente e infantil de brincar com ela.  Pois isso implicava ter que viver de novo... E a vida em si lhe era insuportável. Tudo acabia caindo, ela bem sabia disso, e tudo voava no ar como avião lotado que vai pra nunca mais voltar. Sem destino. Ela vivia por enquanto. Ela inventava.  Isso  não queria dizer que ela não saiba aproveitar da vida, pelo contrário. Essa vida (entre parênteses) pegava suas origens no lugar mais fecundo da sua imaginação, e graças à esse semente florescia idéias, desejos, esperanças se entrecruzando e indo por todas direções. Até se deslocar numa obsessão. 
 
Ela era obsessiva, mesmo ficando indecisa e hesitante. Ela possuia uma força que superava qualquer indecisão, um tipo de impulso que não parecia vir dela, e, no entanto, era  sua identidade maior. Antes de ter sido expulsa naquele deserto onde ela nunca se encontraria mais. O que se encontrava no deserto era só mera alucinação. Quando ela tinha uma visão, ela se concentrava nela.  Por enquanto. Mas as vezes o transitório parecia não querer passar.  Como uma tempestade de arreia que demorava uma eternidade, que impedia os olhos de ficar abertos e rasgava a pele. Doía.  
 
A arte lhe era importante para desviar, transformar, sublimar, a dor. Mas, dum outro lado, a arte permitia uma entrada na dor ainda mais profunda e perigosa que a própria dor. Talvez mesmo desnaturava a dor.  Por isso, a arte mais saudável e verdadeira era a própria arte de viver, que consistia em viver directamente as coisas, as dores, e as alegrias, desprendidos do eu, e sim ligados ao universo.  Quando pensava na sua dor, tinha que pensar na dor da humanidade, e não pensar, sentir, a grandeza do universo, sem sequer querer medir-se a ele, mas sabendo que ela fazia parte desse tudo-nada.  Do mesmo jeito, sua alegria não tinha limites. Mas ela seguia pensando demais, escrevendo demais, criando demais, o que nem precisava ser pensado, escrito ou criado, e, no entanto, o caminho da arte, as vezes, parecia ser o único caminho que existia.
Ela o encontrou por acaso.  Foi um encontro como todos esses encontros imprevistos que acabam nos marcando como se fosse escrito no céu.  Ela não acreditava no acaso, nem no destino.  A única crença que ela tinha era a do Mistério.  Ele sempre a guiava numa luz escura, e ela seguia sem questionar.  Quando o Mistério a chamava para dançar, todo vestido de preto, ela se deixava cair nos seus braços, aliviada.  Enfim, ela podia descansar... deixar seu corpo, seus sensos, sua alma, flutuar.  
 
Eles começaram a dançar, suavemente, embaixo duma noite que tardava a cair.  Seus gestos estavam precisos e abstractos no mesmo tempo, como se misturassem a força bruta da natureza com a aprendizagem humana e técnica.  O olhar dele era frio, exergando ela com a intensidade e humidade de uma onda. Um olhar incisivo de tubarão.  Ela se enfeitizava nesse vaivem musical à luz laranja e preta dum céu de fim de mundo.  Fechou os olhos.
Ele gostava da sua pele doce, contra a sua.  Ele acariciavá-la, enquanto dançando, à partir da raiz dos cabelos até o interior das coxas, passando pelas costas nuas, pelas ancas, delicadamente, como o vento afaga a erva.  Sua pele se erguia, se erguia, no seu tocar, mas os dedos dele ficavam precisos, seguindo o som da guitarra.  Sua pele como vestido de satim, como ondas frágeis e corajosas do mar.  Ela tremia de tanta delicadeza.  Quando ele a debruçou para trás, seu coração se apertou.  Ela abriu os olhos e sentiu a vida de volta nos seus membros.
Ela se apoderou da força da noite que tinha –enfim- caido, e não quis mais se dar para ele.  Queria que ele a deseje como impossibilidade.  Queria que ele sofra como ela tinha sofrido. Podia ser perigoso brincar com o Mistério...  De repente, os papeis mudaram como num filme onde o escritor da trama escolhe a morte em vez da vida ou vice versa.  Pois ela não sabia mais se resistir era viver ou morrer.  Ela começou violentemente a guiar a dança com os gestos dementes de um desesperado.  Ela escondeu sua angustia e sua dor e fingiu o desinteresse.  O verdadeiro desinteresse vinha de um amor puro.  Mas o seu amor para ele era feio, cheio de ciúmes, de possessividade, de desejo, de vontade de transgressão e de orgulho.  Os tambores se juntaram ao som da guitarra e batiam mais forte.  
 
Ela gostava, gostava, gostava tanto que ficou com enjôo, de ficar girando, girando, girando, ao redor daquele alvo que nem queria atingir.  Quando ele foi seduzido e quis dar tudo para ela, quando a música acabou e que o sol começou a surgir de novo atrás do amanhecer, quando ela parou, esgotada, o sopro despojado, os pés, vermelhos, doendo; quando tudo parecia ser possível…

O Mistério tinha ido embora.  
 
Sem que ela percebesse.  E ela ficou dançando na sua sombra, girando, girando, girando. Até enlouquecer. 
 
Por enquanto.